Monthly Archives: Fevereiro 2016

Anjos e Demónios: “Steve Jobs” / “Trumbo”

Steve Jobs + Trumbo

Steve Jobs

Classificação: 8/10

Nomeações: 2 (Melhor Ator Principal, Melhor Atriz Secundária)

Que voltem para trás todos os que esperam aqui um “biopic” convencional. Não é. Não é assim que Aaron Sorkin funciona. Mais do que procurar a realidade factual de uma dada personagem histórica ou de um dado momento na sua vida, Sorkin almeja à sua realidade emocional. A estrutura narrativa de concentrar todas as conversas mais marcantes da vida de Steve Jobs nos minutos precedentes a cada um dos seus grandes eventos de lançamento de produtos da Apple (e não só) é brilhante – consegue guiar-nos numa viagem pela alma das personagens sem nunca se deixar “distrair” pelas suas realidades práticas. Michael Fassbender tem uma performance de grande coragem e contenção, mostrando um Jobs que passou tanto tempo a cultivar uma imagem tão endeusada da sua personalidade para o exterior que se esqueceu consistentemente de cultivar as suas relações interpessoais com a mesma dedicação. Já Kate Winslet é ainda melhor como Joanna Hoffman, a “número dois” de Jobs ao longo da sua carreira e, efetivamente, o seu “Grilo Falante” – a única pessoa capaz de dizer a verdade ao seu patrão e dar-lhe uns abanões regulares no seu pedestal. Danny Boyle guia com mão segura (e alguns rasgos de criatividade visual) um previsivelmente rico guião de Sorkin, pejado dos malabarismos verbais cómico-sérios que, hoje em dia, tendem a afastar os críticos mas que este que vos escreve continua a devorar com gosto. Se não dou melhor nota a este filme é, talvez, por se comparar levemente por baixo em relação aos melhores do ano. É um filme muito bom, mas sem grandes momentos de rasgo que eu sinta que vão ficar para a História. E o facto de eu estar aqui a tentar justificar a nota que dei a um filme do qual gostei tanto, só mostra como 2015 foi um belíssimo ano de cinema.

 

Trumbo

Classificação: 7/10

Nomeações: 1 (Melhor Ator Principal)

Se “Steve Jobs” se destaca do pelotão pelos seus diálogos dinâmicos e formas inovadoras de organizar a sua estrutura narrativa, “Trumbo” é um puro “biopic” com tudo a que temos direito. E esse talvez acabe por ser o seu ponto mais fraco. A história de Dalton Trumbo é cativante. O filme acompanha a vida do argumentista de Hollywood que, nos anos 50, se recusou a assumir como comunista perante o Congresso e foi preso, para depois regressar e ser forçado a trabalhar na clandestinidade, numa Hollywood também ela paralisada pelo medo e paranoia anticomunista. Trumbo era um homem singular, um membro pomposo das elites que se adorava ouvir falar, mas que não obstante estava disposto  a sacrificar tudo na vida para lutar pelos mais fracos e sem apoio do Governo. É nesse equilíbrio entre preocupação genuína e eloquência shakespeariana que vive a interpretação que Bryan Cranston faz desta personagem – e é dos trabalhos mais inspirados que já o vi fazer no grande ecrã. “Trumbo” é um filme relativamente esquemático sobre um homem que viveu a sua vida a quebrar barreiras.  É um conto inspirador sobre como é mais importante ainda manter a força das nossas convicções durante os momentos de sofrimento e desafio, que durante os momentos em que tudo corre bem. Nomes como Diane Lane, Louis CK ou Helen Mirren também dão tudo o que têm a esta história – e fazem-no admiravelmente –, mas este filme pertence a Cranston. O modo como este consegue transmitir o carisma natural de Trumbo sem nunca o degenerar numa caricatura é quase milagroso – e uma das mais interessantes performances entre os nomeados este ano. Uma performance muito interessante num filme agradável mas levemente banal.

 

Pedro Quedas

Deixe um comentário

Filed under Críticas

A poesia na violência: “The Revenant”

The Revenant

Classificação: 9/10

Nomeações: 12 (Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Ator Principal, Melhor Ator Secundário, Melhor Fotografia, Melhor Montagem, Melhor Direção Artística, Melhor Guarda-Roupa, Melhor Caracterização, Melhor Mistura de Som, Melhor Montagem de Som, Melhores Efeitos Visuais)

 

A câmara move-se de forma elegante num passo de bailado para a direita, captando toda a beleza natural da paisagem selvagem do interior norte-americano. De repente, a magia do momento é quebrada por um estrondo da mais visceral e gráfica violência, enquanto esguichos de sangue parecem jorrar para o próprio ecrã. É duro de ver e o instinto de desviar o olhar não é mais que puramente natural. Mas, se o fizermos, estaremos a perder alguma da maior ambição visual do ano cinematográfico. Estaremos a privar os nossos sentidos da mais recente pedrada no charco atirada pelas mãos de Alejandro G. Iñárritu.

A narrativa de “The Revenant” é relativamente fácil de explicar. No Velho Oeste, algures nas montanhas geladas do Inverno de Wyoming, um grupo de caçadores tenta regressar em segurança à sua base depois de serem atacados por índios. Depois de ser atraiçoado, Hugh Glass (Leonardo DiCaprio) arrasta o seu corpo moribundo pela lama e pela neve, movido por um desejo inquebrável de obter vingança.

Numa história tão simples e relativamente despida de grandes momentos de surpresa narrativa, Iñárritu socorre-se inteligentemente de alguns dos melhores atores desta geração para carregar às costas a tensão dramática do filme. Domhnall Gleeson volta a ter uma performance subtil mas perfeita (como nos habituou no incrível ano de 2015 que teve) e Tom Hardy volta a demonstrar a sua infindável coragem para se atirar de cabeça a papéis que exigem todas as suas ferramentas dramáticas. O seu esquivo John Fitzgerald é, provavelmente, o sujeito mais complexo em toda a trama e contam-se pelos dedos de uma mão os atores que o conseguiriam interpretar sem degenerar numa caricatura.

Por fim, temos Leonardo DiCaprio, que se prepara levar para casa um Óscar por uma performance que vive da sua completa entrega. Cada músculo do seu corpo é levado ao limite, cada expressão facial caminha numa corda bamba de sofrimento e determinação, cada silêncio dura um segundo mais do que achamos possível aguentar. É um grito mudo de um ator que não sabe o que é fazer um filme a meio gás. É impressionante.

Muitos críticos apontam a Alejandro G. Iñárritu algum sadismo e uma propensão para chafurdar na violência dos seus personagens pelo puro prazer de retirar todo o “sumo” de cada gota de sangue derramado e grunhido de dor. De que o realizador mexicano só fica contente ao ver toda a alegria sugada de cada um dos seus personagens. E, francamente, não posso dizer que não concorde com alguns desses pontos. Houve momentos deste filme em que pensei “já basta. Podemos avançar com a história?”. Mas depois fui novamente arrebatado num rasgo de puro engenho imagético e esqueci-me da minha própria pergunta.

Depois de apontar todas estas questões, consigo antecipar muitas das dúvidas que possam surgir nos que me estão a ler. Acima de tudo esta: como é possível dar 9 a um filme que nos provoca tantos sentimentos contraditórios? Porque um filme não é um problema matemático e uma apreciação crítica do mesmo não tem necessariamente de fazer sentido. Nas mãos do seu cinematógrafo de eleição, Emmanuel Lubezki, a câmara voa e mostra-nos planos dignos dos sonhos. São aventuras visuais impecavelmente capturadas, a mais pura representação da ambição visual. Nem mesmo um terceiro Óscar consecutivo será suficiente para verdadeiramente apreciar o que Lubezki tem andado a fazer por Hollywood. Porque é que este filme merece um 9? Porque, nas mãos certas, o cinema é uma experiência sem rival. “The Revenant” está nas mãos certas.

 

Pedro Quedas

Deixe um comentário

Filed under Críticas

A tragicomédia na crise: “The Big Short”

The Big Short

Classificação: 9/10

Nomeações: 5 (Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Ator Secundário, Melhor Argumento Adaptado, Melhor Montagem)

 

Como contar a história de como a promiscuidade entre os investidores no mercado imobiliário e as agências de rating criaram uma ruptura nos créditos de risco subprime que degenerou numa crise financeira tão devastadora que arrastou virtualmente todas as economias no mundo para o fundo do barril… sem fazer com que os olhos dos espetadores fiquem vidrados? Colocar a Margot Robbie num banho de espuma a explicar o que se passou enquanto bebe um copo de vinho tinto e nos pisca um olho sedutor. Claro. Como é que ninguém pensou nisto antes? Mais do que apenas contar uma história importante, “The Big Short” é um invulgar exemplo de como saber contá-la.

O crédito aqui deve ser dado a Adam McKay, o realizador e co-argumentista do filme, previamente mais conhecido por comédias como “Anchorman” ou “Talladega Nights”. As consequências da crise do mercado imobiliário foram tão severas e enfurecedoras que, de facto, talvez a única forma de as abordar fosse utilizando as ferramentas da comédia. Mas desengane-se que pense que tem aqui um festival de gargalhadas. “The Big Short” tem uma veia ácida e acutilante que o alimenta. É um filme que nos seduz e desarma com o insólito da situação  e “truques” como fazer os personagens olhar diretamente para a câmara e depois nos projeta contra uma parede quando nos revela o que exatamente se passou. E o impacto das verdades que assim são ditas torna-se especialmente duro por isso.

O mecanismo que McKay usou para navegar nestas complexas águas foi pegar no livro homónimo de Michael Lewis e focar o filme em quatro pessoas (ou grupos de pessoas) que anteciparam a crise que se aproximava e fizeram os investimentos corretos para lucrar com o caos inevitável. A corda bamba que temos de caminhar neste filme é como gerir a empatia natural que sentimos por estas personagens – alguns deles tornaram-se dos maiores soldados na luta contra a cegueira autoinduzida das entidades reguladores face aos abusos das instituições financeiras – mesmo sabendo que usaram os seus talentos para lucrar com uma tragédia iminente. Este nível de gestão emocional só é possível devido ao talento de um elenco de luxo, onde se destacam Ryan Gosling, Steve Carrell e, acima de tudo, Christian Bale, que volta a enterrar os seus dentes numa personagem invulgar (um médico tornado investidor financeiro com um olho de vidro e sintomas de autismo) e a brilhar como poucos da sua geração conseguem.

Já falámos de como o realizador pegou nos seus instintos cómicos e um grupo de talentosos atores para nos guiar num essencial mas inescrutável capítulo da nossa História recente. Mas falta ainda mencionar o ingrediente secreto: a montagem. Nas mãos de Hank Corwin, este mosaico de vidas, sketches e compilações de dados ganha uma vida inesperada. Mais do que um sermão atabalhoado, digno de uma qualquer teoria da conspiração idiótica disseminada nas redes sociais, o que temos aqui é uma voz clara e inconfundível. Um filme objetivo mas com um ponto de vista, que torna claro o impossivelmente complexo.

“The Big Short” é um filme divertido. É também um dos filmes mais recentes com a maior capacidade para nos lançar numa espiral de raiva que enche o nosso cérebro de fantasias de bombas nucleares a rebentar bem no centro de Wall Street. Eu diria que é impossível não sair furioso da sala de cinema depois de ver este filme, mas o ser humano parece ter uma capacidade infindável para mentir a si mesmo e acreditar na mentira. Filmes como este são um comprimido difícil de engolir. Mas, num mundo moderno em que a multiplicidade de meios de obter informação torna a nossa compreensão cada vez mais complicada, poderão ser também das poucas curas que restam.

 

Pedro Quedas

Deixe um comentário

Filed under Críticas